Frequentemente somos confrontados com a difícil questão de expôr ideias sobre tecnologia a decisores políticos muitos dos quais, por diferentes razões, são impermeáveis a qualquer explicação. Não é fácil descrever os conceitos relacionados com Open Source, Normas Abertas e a forma como estes dois conceitos são distintos, independentes e complementares. Mais difícil ainda é explicar qual o impacto negativo do actual monopólio em certos aspectos das TI e como algumas acções simples incisivas o poderiam resolver. E quando alguém finalmente compreende, será fácil propagar essa explicação à respectiva família política?
Entre os extremos do “ignoro, não quero e falta-me tempo para pensar nisso” e o “conheço, compreendo e tenho na agenda” existem porventura diferentes graus de cinzento no nosso espectro político. Interessa pois analisar que tipo de propostas existem nos programas eleitorais para as Legislativas que se avizinham.
Antes de o fazer é importante termos em mente algumas coisas
- o facto de algo estar num programa eleitoral não significa que seja implementado
- o facto de algo estar num programa eleitoral não significa que seja bem implementado
- o factor de algo não estar num programa eleitoral não impede que seja implementado
Como se sabe o actual Governo do Partido Socialista teve alguns méritos importantes nesta matéria, por exemplo, criando condições para a coexistência de várias ofertas de software nos programas e.escola e e.escolinha (aka Magalhães), sem se limitar à opção default que faria destes projectos veículos de distribuição do “fornecedor único”. Este passo deveria ser considerado normal e natural em termos de neutralidade tecnológica, mas dadas as condições iniciais da realidade portuguesa merece ser reconhecido como um passo corajoso e pioneiro. Mais recentemente começaram a ver-se alguns pequenos avanços fruto da assinatura do protocolo com a ESOP/AMA em 2008, que poderão eventualmente ser alargados mais tarde, se para tal houver vontade. Serão estes méritos isolados de cada projecto ou o resultado de uma visão estratégica?
Importa ter em mente que um programa eleitoral representa, em princípio, um consenso alargado dentro do partido que o propõe. Portanto, a presença de certas matérias no programa de um determinado partido sugere uma sensibilidade mais generalizada do que iniciativas pontuais que aconteçam em função de vontades “isoladas”.
Vejamos então o ponto de situação dos diferentes programas eleitorais:
Partido | Propostas |
Bloco de Esquerda | Rejeição das patentes de software, software livre na Administração Pública, interoperabilidade |
CDS/PP | Não contém nenhuma referência (nota: o programa está em flash, não é pesquisável) |
CDU | Rejeição das patentes de software, promoção do software livre e formatos livres |
PS | Não contém nenhuma referência |
PSD | Não contém nenhuma referência. |
Neste momento ainda não estão disponíveis os programas do CDS/PP e PSD, os quais lamentavelmente só estarão prontos no final de Agosto a um escasso mês das eleições. [Update 03/09: já se encontram disponíveis].
No entanto, é um facto conhecido que são os partidos mais à esquerda que se encontram tradicionalmente bem informados em relação a esta matéria. Isto tem sido demonstrado por diversas vezes, não só nos programas, como na actividade parlamentar mas também em posições públicas (ver por exemplo o Projecto de Resolução 227/X e Projecto de Lei 557/X ambos da autoria de um conjunto de Deputados do PCP) . Mas este é um dado meramente empírico, que não vejo como alinhar com nenhuma ideologia política.
A Tecnologia Aberta reforça a posição do Estado enquanto consumidor: será uma ideia de esquerda? A Tecnologia Aberta é boa para as PMEs: quiçá uma preocupação de direita? As Normas Abertas são o enabler da competitividade no mercado: não deveria ser uma preocupação geral?
Não há portanto nenhum processo ideológico que justifique a situação. Se os partidos de esquerda, estão mais informados nesta matéria é apenas porque se informaram melhor. Se apoiam é porque vêem vantagens. Se os restantes partidos fossem contra fariam campanha pelo software proprietário e formatos fechados. Na prática pouco ou nada têm dito sobre o assunto.
Tive oportunidade durante o evento Novas Fronteiras, em que o Partido Socialista recebeu sugestões para inclusão no programa eleitoral, de apelar à utilização das normas abertas em Portugal. Concretamente, com algum esforço de simplificação, expus o seguinte:
Portugal 2.0 – normas abertas e interoperabilidade
A web 2.0 mais do que uma buzzword foi uma revolução. A revolução que nos trouxe aplicações como a Wikipedia, Google Maps, Facebook, Twitter, Firefox, Chrome, Delicious entre outros. A geração da web 2.0 reconhece a pluralidade e diversidade de aplicações e sistema operativos e mostrou que é dessa pluralidade que nascem a todo o momento as inovações mais interessantes. Mas as TI em Portugal – por analogia – encontram-se ainda em larga medida na sua versão 1.0 com muitas aplicações não portáveis – presas a uma dada plataforma – bem como protocolos e formatos proprietários que não garantem o acesso universal aos dados. Incidentes recentes com aplicações desenvolvidas no âmbito de serviços públicos nacionais vieram evidenciar que a monocultura implantada e o desconhecimento de princípios elementares de interoperabilidade originam situações que restringem o acesso generalizado a estes serviços e impõem graves condicionamentos ao mercado.
Propõe-se melhorar a competitividade no mercado das TI incentivando e apoiando o uso de tecnologias multiplataforma e de formatos abertos, aproveitando o enquadramento Europeu que já existe sobre essa matéria e tendo em conta o que já foi implementado noutros países Europeus. As TI de um Portugal 2.0 deverão utilizar standards abertos e tecnologias multiplataforma para quebrar todas as barreiras de comunicação entre instituições, empresas e cidadãos.
Creio que para além de algum desconforto manifestado na mesa ao lado a proposta não gerou eco por aí além. É pena. Acredito que mais do que falta de vontade ou dinamismo (que em diversos aspectos devemos elogiar no actual Governo) o que falta é sensibilidade e visão em profundidade destes assuntos.
Mais recentemente nas duas Blogconf organizadas primeiro pelo Partido Socialista e depois pelo Bloco de Esquerda) o tema da Tecnologia Aberta veio à baila. José Socrates respondeu a Paulo Trezentos. Francisco Louçã respondeu a Rui Seabra. Dos dois diálogos transparece imediatamente que enquanto José Socrates tem o pensamento centrado numa expressão que o ouvimos repetir centenas de vezes “o computador”, Francisco Louçã vê para além disso estando à vontade com “propriedade intelectual”, “software livre” e “normas abertas”. Quando José Sócrates afirma como muito positivo que a Microsoft instale em Portugal centros de competências não tem disponível para ponderação uma estimativa, mesmo que simplista, das consequências negativas para o mercado da monocultura actualmente instalada. Talvez não tenha sequer a percepção dessa monocultura. Louçã por outro lado, até tem presente quanto se gasta em licenças para a Assembleia da República.
Louçã vs Seabra
Esta percepção é importante. De cada vez que somos mal atendidos, ou não somos atendidos de todo, num hospital público talvez nos devamos questionar como se podem gastar via ajuste directo milhões de euros dos nossos impostos sem ponderação de alternativas. Haveria muitos exemplos destes para referir, e muitos outros para procurar em http://transparencia-pt.org mas basta por exemplo termos em mente esta adjudicação de quase 10 milhões de euros para nos interrogarmos sobre a causa de certas coisas.
Socrates vs Trezentos
Seguramente não é fácil ser-se Primeiro Ministro, tendo que dominar sem gaguejar, as ideias gerais de Energia, Economia, Tecnologia, Saúde, Educação e ainda lidar com o funcionamento da política em Portugal. E não se pode exigir que toda a gente domine tudo a 100%. No entanto José Sócrates já deixou claro que a tecnologia é para ele uma prioridade e portanto aí deveria demonstrar uma muito melhor sensibilidade ao pormenor. A visão simplista de “o computador” ou “o milhão de computadores” esconde nuances que nos podem tornar grandes nos números mas atrasados no conhecimento, na independência tecnológica e na inovação que tanto desejamos.
É aqui que entra a questão do consenso alargado versus iniciativas isoladas. Muito provavelmente o Primeiro Ministro não se encontra suficientemente bem enquadrado com colaboradores com diferentes visões da Tecnologia. Isso significa que embora possam existir iniciativas isoladas com muito mérito e bons resultados a sensibilidade para estes assuntos não se desenvolve nem se generaliza dentro do seu partido. E o inocente deslumbramento perante a gigantesca Microsoft permanece, com a monocultura e as suas consequências [1,2,3,...]. Talvez neste aspecto o Conselho Consultivo parte da proposta inicial Projecto de Resolução 227/X mas inviabilizado pelo PS em 2007 fizesse sentido, permitindo alargar horizontes em matéria de tecnologia. Um assunto para voltar a debater?
Por tudo isto quem se interessa por Tecnologia Aberta deve em tempo de eleições examinar com cuidado o track record de cada partido na matéria mas também observar os programas eleitorais no sentido de formar as suas expectativas. Independentemente de qualquer opção política, que tem que ser ponderarda olhando a muitas outros aspectos, a minha expectativa pessoal é de que o próximo Choque Tecnológico não seja uma colisão frontal mas sim um incisão inteligente e cirúrgica que introduza as Normas Abertas, interoperabilidade multiplataforma e soluções Open Source como opção nos sistemas públicos. São aspectos nos quais uma boa parte da Europa já avançou e em que Portugal não deve ficar para trás.
Nota:
Este post será actualizado quando estiverem disponíveis os programas do PSD e CDS/PP.